sábado, 31 de março de 2018

Réquiem

Requiem aeternam dona eis, Domine; et lux perpetua luceat eis.
Repouso eterno dá-lhes, Senhor, e que a luz perpétua os ilumine.

(Introitus - Requiem em ré menor, K. 626, Mozart)

Latim
Requiēs - descanso, repouso
f (genitivo requiētis); terceira declinação.

É um momento difícil para escrever. De vez em quando, creio eu, as pessoas que contam um pouco das suas vivências e de seus devaneios por meio das palavras sofrem, em maior ou menor grau, com o gosto amargo de ter inspiração nenhuma. E estou nessa fase, um tanto melancólica, empurrando os acontecimentos, sem excitação, tal qual uma andarilha a desfazer-se.

Posso citar muitas coisas que estou fazendo e isso pode parecer bem animador.

Estou...

... Redigindo um artigo para terminar minha Pós/MBA em Contabilidade Pública, trabalhando com Mapas Mentais no modo homework para um aplicativo de Educação Corporativa, indo ao pilates, planejando estudar para concursos públicos e fazer mais cursos de capacitação, voltando para a Auto-Escola e assistindo a Netflix no final de todas as noites.

Parece uma vida agitada e cheia de possibilidades, entretanto algo anda a atormentar-me, como uma dormência parcial. Sinto que vivo uma realidade indiferente, que nunca pertenceu-me. Assemelha-se a vestir a roupa de outro ser e que usurpei o seu lugar. As pessoas que esperam algo dela não fazem ideia de que eu não posso satisfazê-las.

Todos os dias escuto sentenças cruéis sobre uma criatura que não deveria ser do modo como é. Ela deveria existir para fazer-se ideal e assim suprir as expectativas daqueles que nunca enxergarão além das cercas dos seus lugares de origem.

Eu não desejava exatamente essa Pós de Contabilidade Pública, quero mesmo estudar História, Arqueologia, Literatura, Cinema, Música, participar de rodas de poesia com pessoas ávidas e instigantes e que almejam os prazeres das minúcias. Gostaria de tomar café e falar sobre os livros que contam as experiências reais de George Orwell. Meu trabalho com Mapas Mentais gera apenas 63% de um salário mínimo por mês e quando há demanda (depois de um tempo de aflição, acabei de verificar que já recebi pelo trabalho desse mês.). O pilates causa-me dor e a instrutora transparece uma falsidade sem precedentes. Estudar para concursos públicos é um fardo e a Auto-Escola, bem... É sempre um evento traumático.

Ontem soube que um colega do meu ex-curso de Física teve seu plano de estudos aprovado. Ele já está no curso desde 2008 (e nessa época faltava pouco para que eu me formasse em Ciências Contábeis na mesma instituição...). Só em uma cadeira, ele reprovou incontáveis vezes, sendo a última no semestre que passou. Ele ainda veio-me falar que sentia muito por mim e que pelo menos eu estava fazendo uma pós e estava na frente dos que ficaram. Fiquei em estado de cólera e se estivesse falando pessoalmente com o mesmo, teria cometido uma barbaridade. Só que o meu problema não o engloba. A minha raiva direciona-se aos professores e ao maldito e inútil colegiado (o que foi relatado minuciosamente em outro texto). Para mim, foi a morte de algo, uma grande ilusão embrulhada em papel de sonho, e, neste momento, passo pelo Requiem e não sei quando o rito terminará.

Eu sempre vivi numa solidão extrema, mesmo acompanhada por muitos. Tentei suprimi-la com amizades débeis e descartáveis e com relacionamentos odiosos e abusivos. Entretanto este estado recente é ainda mais obscuro, pois está nu, de pele ao vento, reluzindo como um farol que não deixa-me esquecer do meu desterro... Longe daqueles que completam-me.

Todos sumiram. Foram cuidar das suas vidas e dos assuntos e pessoas de seus interesses. Noto que enquanto estavam em uma situação frágil e distanciados dos olhos e toque dos que amavam, procuravam uma morfina para abrandar o deslocamento temporário. Assim saíam à procura da pessoa mais disponível. E como em toda revoada, ao atingirem suas metas, partiram para onde pertenciam, deixando os mortos e feridos para trás.

Pergunto-me como superar seis anos e alguns meses de apostas altas, de erros e desvarios. Indago-me como esquecer os rostos e as falas. Meu receio é que esta existência esteja falhando e eu não cumpra o propósito que foi-me designado. Sou uma pecadora imperdoável e meu carma pode-se estender além do infinito.

Acomete-me uma enjoativa enxaqueca e meu estômago padece há dias. Deus, mantenha-me em minha própria mente, pois longe dela sobrará de mim apenas poeira e escuridão.

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