terça-feira, 13 de março de 2018

Damnatio memoriae - a expulsão do paraíso

Expulsão do Paraíso
(La Cacciata dei Progenitori dall'Eden)
Masaccio
1425
Capela Brancacci
Igreja de Santa Maria del Carmine
Se eu fosse contar os dias de dissabor e tristezas, faltariam-me números precisos. Pois deles perdi a conta há tanto tempo que parece-me que estes fazem parte da minha própria essência.

Quase não saio mais de casa e pouco importa-me mais olhar o céu e as pessoas. O mundo se liquefez, o meu próprio, em algo tóxico e de um amargor insuportável.

Não sou uma pessoa de muita sorte, talvez, a mais azarada dentre alguns. Tudo o que eu toquei virou pó, perdeu o brilho, fragmentou-se em espelhos minúsculos que refletem as mil faces do revés constante.

É estranho conviver com as sombras e não ter o reconhecimento devido. Cresci em um ambiente onde para chegar-se a notoriedade e o respeito, o muito nunca será o suficiente e os fracassos e decepções, trilhas essenciais da vida, são considerados erros grosseiros, dignos de maldição.

Se antes eu era uma crianças esperançosa, sonhando com um mundo além das nuvens, mesmo sofrendo com as constantes perseguições, hoje tornei-me uma adulta desiludida, que não acredita nem mesmo nos enredos do amor utópico, que culpa-se por escapar da realidade, tão dolorida, ao invés de tornar-se uma cidadã digna, como toda a sociedade quer: uma funcionária pública, uma mulher com dinheiro, uma esposa e mãe. Esse alguém, tão distante de mim, é que tornaria-me respeitada, principalmente pela família, adorada por outros comuns, notada pelo meu entorno e adjacências.

Diante dos meus mais novos fracassos, não posso concluir o processo de restauração da minha alma. E assim sempre foi. Todos os dias puxam-me para o Inferno, não por quererem o meu mal, mas por não saberem como lidar com a minha difícil caminhada pela estrada do meu ser, esse que veste essa capa momentânea e que, em sua forma mais jovem, foi a desculpa perfeita para zombarias que refletem-se hoje em gotas rubis de memórias navalhantes.

Frente a esse cenário, pergunto-me se eu gostaria de morrer. E logo vem-me um não. O que é muito excêntrico. Todos que consideram-se um fardo para o mundo, um fardo para eles próprios, arquitetam planos para sair desse universo e ter uma segunda chance (porque todos, de acordo com minha própria crença, também têm outras chances, todadavia acabam trazendo suas dores antigas e os ferimentos físicos mortais em forma de mais sofrimento para a vida nova.).

Então... O que faz com que eu ainda queira viver?

E essa pergunta é respondida de diversas formas. E não espere que elas sejam lógicas ou poéticas.

Vem-me, neste instante, um caso recente. Uma conhecida entrou em depressão gravíssima e que quase custou-lhe a vida. Tudo ocasionado por um mestrado e por perseguições de professores. Coloquei-me em seu lugar e os únicos sentimentos que vieram-me foram o ódio e a vingança. Visualizei cenas de violência e no fim... Lá estava eu, possivelmente presa por assassinato.

Assim, o que motiva-me a continuar nesta vida não é a esperança moribunda, mas sim os sentimentos de cólera e fúria contra tudo e todos.

Porque pior do que a própria morte é o que vem depois dela: o infame damnatio memoriae.

E o que seria mais saboroso para os inimigos do que pisar em cima do cadáver do rival? O que seria mais refrescante do que beber as lágrimas derramadas antes dos instantes finais? É, o que posso imaginar, o mais próximo de presentear o diabo com a própria alma.

Se antigamente a Condenação da Memória era dada para traidores do Império Romano, essa vaga, atualmente, é ocupada pelos suicidas. Porque os familiares e amigos evitam falar sobre e evocar recordações e os detratores refestelam-se no mar dessa sentença vil.

Claro que nada disso afasta-me das possibilidades que vagueiam por aí. Só que meu orgulho ferido alimenta o meu espírito contra qualquer ato que possa ser o triunfo daqueles que eu gostaria de ver estatelados no chão, esmagados e exauridos pela consequência de suas próprias maldades.

Se minhas adorações de carne e osso foram obliteradas, todas as minhas oferendas, agora, dirigem-se a Nêmesis.

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