terça-feira, 20 de novembro de 2018

Das paixões e seus substratos

Merry-Go-Round, 1916, de Mark
Gertler. Tate Britain.
"A mulher apaixona-se através de seus ouvidos e o homem através de seus olhos." (Knowing that women fall in love through their ears and men through their eyes. Confessions of an optimist‎ - Página 186, de Woodrow Wyatt - Publicado por Collins, 1985 - 364 páginas.)

É mais uma dessas tardes abafadas e mórbidas passadas excepcionalmente em minha casa. Estou mergulhada em um tédio abissal e minha alma reclama insistentemente pela falta das figuras apaixonantes, dignas de olhares e desejos secretos. É, de certa forma, preocupante chegar à conclusão de que, mesmo mergulhada neste cotidiano jovial e vivaz, meus olhos padeçam pelo desnudar pulverizante de corpos quando estes mesmos abrem a boca. É como se toda a animação fosse estrangulada e deixada numa cena odiosa de um crime sanguinolento. 

Então lembrei-me dessa frase acima do britânico Woodrow Wyatt (1918-1997) e que caiu tão bem nessa situação como luvas de seda feitas sob medida. 

A paixão é uma espécie de feitiço poderoso que opera distintamente entre os sexos. Os homens deixam-se levar pelas formas, contornos, e perdem-se debilmente pela beleza padrão de sua época ou por aquela dos seus sonhos eróticos. Mais tarde, quem sabe, analisam a figura de seu deleite pela ótica da ideologia e, se não houver compatibilidade, colocam-lhe fita na boca e tudo estará certo. Já as mulheres encantam-se por palavras (de uma forma ou de outra). E como elas... Assim também sou.

Os seres humanos apaixonantes e dignos de adoração fazem das palavras dentes-de-leão que flutuam suavemente no ar para depois acariciarem a pele do rosto numa tarde de verão.  E agem ardilosamente por meio de seus sorrisos cativantes, gestos sensuais levemente camuflados e discursos românticos preenchidos de cultura e forte personalidade. É através deles que renasce a esperança de que o prazer não está mergulhado na lama da vulgaridade, das extravagâncias, dos músculos, ou corpos torneados. Essas mesmas pessoas são gentis por natureza, entretanto não lhes fogem, pelo próprio egoísmo e vaidade, arroubos de superioridade, vez ou outra, que nunca passam de deliciosas e crepitantes manifestações de seus espíritos. Suas companhias preenchem os vazios da monotonia, inspiram e aceleram o coração. O amor talvez nasça dessa maneira, suponho eu. Contudo afirmo veementemente que o prazer em sua essência mais mítica é alcançado dessa forma.

E assim a vida torna-se um moinho de vento, esperando sempre a próxima lufada para continuar a movimentar-se. E é aí que mora o grande perigo, pois as paixões desse tipo não produzem apenas felicidade, satisfação e êxtase. Essa equação também fornece suas impurezas: tristeza, desesperança, desilusão e saudade. Usa-se o que é nutritivo e saboroso primeiro para depois cair no abismo da abstinência.

Sim, eu estou nessa fase sombria, com todas as pessoas transformando-se em rabiscos mal desenhados, que proferem emaranhados de letras intraduzíveis e que se liquefazem ao pôr do Sol.

A solidão mais estranha é aquela que consegue, mesmo entre as multidões, impor sua presença e destruir qualquer protótipo de paixão ao mostrar avalanches de iconoclastia.

Poderia mergulhar sem restrições em um mundo mais simplista nesse quesito. Mas isso não será possível, pois fugiria de mim mesma e entraria em negação. 

Respiro um saudosismo corrosivo. Porém a vida seria tão diferente se eu aceitasse uma tola paixão? 

Muda-se o cenário, os atores... E a história continua a mesma. Não adianta enganar-se, porque a vida é cíclica como a valsa energética de um carrossel, as estrelas impossíveis de Quintana e a sentença de Wyatt. 



sábado, 3 de novembro de 2018

Canção de Ninar (Sleepsong) - Secret Garden

Dentre as preciosidades simples da vida, há, pois sim, a música. E são encantadoras as canções melódicas que embalam sonhos doces juvenis, desses que guardamos longe, e desesperançosos, da triste vida adulta. E que voltam, vez ou outra, para mostrar-nos que, apesar dos dissabores e desenganos, a vida ainda continua...

Lay down your head
And I'll sing you 

a lullaby
Back to the years
And I'll sing you to sleep
And I'll sing you tomorrow
Bless you with love
For the road that you go...

Deite sua cabeça
E eu cantarei para você 
uma canção de ninar
Voltando no tempo
E eu cantarei para você dormir
E eu cantarei para você amanhã
Abençoarei você com amor
Para o caminho que você trilhará...

(Sleepsong por Secret Garden, álbum Earthsongs/2005, 
compositores: Brendan Graham e Rolf Lovland)


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Horizonte negro, dantesca multidão

"Os costumes são a hipocrisia das nações." (Les mœurs sont l'hypocrisie des nations - Physiologie du mariage ou Méditations de philosophie éclectique sur le bonheur et le malheur conjugal: Nouv. éd.‎ - Página 39, de Honoré de Balzac - Publicado por Charpentier, 1838 - 408 páginas)

As previsões catastróficas confirmaram-se. E não seria para menos. O mundo é governado por uma incrível roda que movimenta toda a energia ao redor de si. E, de tempos em tempos, essa força vital traz paz e quietude, amor e liberdade, para que mais tarde estejamos mergulhados nas trevas escabrosas de um brilho acetinado de toda a cretinice imunda da essência humana, travestida pela moral e os ditos bons costumes. Somos obrigados a presenciar o desvelar das minúcias patéticas de pessoas extremamente religiosas, gananciosas e que tentam expiar seus próprios pecados através de mentiras que assustariam até mesmo o pobre diabo.

Os velhos tempos repulsivos e letais estão de volta, banhados pelo sangue de um vermelho vivo sem precedentes. Esse mesmo vermelho que trouxe dias de glórias, o bem dos pobres e o escárnio dos burgueses. Sim, uma cor tão temida, mal interpretada, mal cuidada e mal administrada. E, mesmo assim, a teimosia não deixa-me afastada dela. Tenho sonhos, mas não mais utopias.

A História anda bem; pelo menos a minha, aquela que vou de encontro todas as tardes desse verão escaldante (e algumas manhãs também quando tenho reunião da minha bolsa de iniciação à docência). Poderia estar melhor, é claro, se meu ego não fosse tão grande e seletivo (e vaidosamente digo que é bem válido ser desse modo).

O meu descontentamento crônico faz eu sentir falta daqueles que tem a minha idade e que entendem quando falo de Simon & Garfunkel ou tomam um café comigo recomendando documentários e álbuns do Nat King Cole, por exemplo.

Padeço pela solidão da falta dos meus iguais.

A juventude não amedronta-me, porém deixa-me muito entediada.

Talvez o Sol nasça daqui para frente com um tom de laranja atômico queixoso e ponha-se levando muitas lágrimas azuis de arrependimento.

Jazem todos os bons sentimentos em covas rasas, assassinados esses por ditadores da vida alheia e das pregações divinas.

E estou aqui... Com o amargor de quem perdeu-se nessa dantesca multidão.