segunda-feira, 13 de maio de 2019

Do curso de rios já vazios

Sketch of Circe, John William Waterhouse
1911-1914
Muito poderia dizer agora. Entretanto chega o momento em que o pouco brilho esvaiu-se de forma lenta e cortante, como pequenas folhas de outono sobre a pele que procura abrigo embaixo das árvores envelhecidas. Penso que viver é um deleite para poucos e uma grande maldição para muitos. E assim, desses prazeres que escolhem apenas uns poucos enobrecidos, o amor pulsa longinquamente, como um farol no cabo do fim do mundo, avisando aos navegantes infelizes que a sua procura acarretará sofrimento imenso antes da morte derradeira.

Ser triste é uma realidade que os tolos otimistas ignoram. São eles apenas espíritos enjoativamente alegres que merecem a máxima distância: comem rosas e regurgitam poesias baratas. O ser humano vil e decadente está por todos os cantos, isso sim, procurando vítimas perfeitas, que acreditam que a lama pode mostrar a lótus com a paciência devida. E essas penosas almas servem apenas como uma válvula de escape e de experiência para chegar-se ao maior nível de dor infligindo.

Pois bem, travesti-me com rochas. Mas desnudei-me para tentar voltar a sentir o frescor do mundo, deixando o meu interior para lançar-me por rios esvaziados, que trazem memórias borradas de um eu fantasioso e que alegrou-me apenas com a imaginação.

Como o canto das harpias, os avisos são muitos para não mais ter-me com essa esperança.

Feri-me, como o previsto por todos os oráculos. E voltei, mais uma vez, para minha concha de pedras com o dissabor das intrigas e das odiosas mentiras.

Em mim sobrou apenas um sentimento de humilhação profunda e de que não posso mais ficar em espaços em que existem tantas diferenças.

Se antes o meu mundo era um filme de David Lynch com personagens de mesma linha, hoje sou a própria reflexão da velhice de Ingmar Bergman.

Perdi-me e não posso mais ser o que planejei nos tempos imemoriais. Os sonhos e as paixões sucumbiram, voltaram-se para olhos mais jovens e belos. Serei, portanto, Circe.

Talvez tenha eu apenas a simples vontade de ficar para sempre em mim mesma e sepultar-me, sem honras, até que a poeira alimente-se da última gotícula de minha alma. Esse seria o meu final digno.