terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Crítica da Semana - 1917/2019

1917 é uma obra-prima. Feito para ser visto no cinema em toda a sua grandiosidade. Sam Mendes leva-nos a uma viagem em dois grandes atos, cada um sem cortes aparentes. Uma única missão para dois jovens soldados dentro da I Guerra Mundial. As trincheiras nunca foram retratadas de maneira mais fiel e dimensional. É uma imersão dentro de um inferno dantesco e um espetáculo de iguais proporções.

Lanço essa crítica antes de escrever definitivamente sobre Coringa (Joker/2019) e que fui assistir quatro vezes no cinema com o mesmo entusiasmo inicial. Pensei que igual sensação não pudesse mais atingir-me. Que engano! 1917 é um dos melhores filmes que eu já vi em toda minha vida. E digo isso com a premissa de que filmes sobre guerra são difíceis para mim (apesar de ter apreciado muitos deles ao longo da minha vida), pois sou acometida, durante semanas, por um sentimento de que a vida é somente tristeza, morte e sofrimento, no qual reinam a barbárie e as decepções, todas envoltas pela injustiça. É difícil expor isso quando eu estou em um curso para ser uma futura historiadora. Entretanto sim, meus caros (as) leitores (as), enfrentar a Historiografia é uma tarefa que pode causar lágrimas constantes, pois o passado é cheio de sangue.

Só que 1917 traz consigo algo diferente. Primeiro, por ter como base a I Guerra Mundial, a Grande Guerra. Não há muitos filmes do circuito americano especificadamente sobre esse marco historiográfico. As exceções podem ser encontradas no cinema russo, como o bom trabalho Battalion (Батальонъ/2015) sobre as mulheres russas no front da I Guerra Mundial. Segundo, o filme de Sam Mendes é direto e sem rodeios. Começa e termina com uma determinada missão. Não existe mais do que isso: "Em 06 de abril de 1917, o general Erinmore (Colin Firth) informa a dois jovens soldados britânicos, Tom Blake (Dean-Charles Chapman) e William Schofield (George MacKay), que a inteligência, por meio de reconhecimento aéreo, verificou que os alemães não estão em retirada como se pensava antes, mas que um recuo tático havia sido feito para uma nova área de defesa. Com as linhas telefônicas de campo cortadas, Blake e Schofield são obrigados a entregar em mãos uma mensagem ao 2º Batalhão do Regimento de Devonshire, para cancelarem o ataque que poderá custar a vida de 1.600 homens.

Porém o mais impressionante é a parte técnica. Só para efeitos de comparação: se o Coringa de Todd Phillips é o que é pela atuação de Joaquim Phoenix, 1917 é igualmente por causa de seu diretor, Sam Mendes. Vale ressaltar que, apesar de toda a concepção voltar-se para a I Guerra Mundial, o arco central é baseado em histórias que o avó do diretor, Alfred Hubert Mendes (o sobrenome não nega, os Mendes têm raízes em Portugal), contava. Ele foi soldado na Grande Guerra e, muitas vezes, serviu como mensageiro por ser pequeno, rápido e ágil. Então trata-se de uma película ficcional, aprimorada com fatos históricos pela roteirista (junto com Sam Mendes) Krysty Wilson-Cairns. Com a história então em mãos, a monumental construção do cenário procurou reproduzir quilômetros e quilômetros de trincheiras em campos reais, espalhando efeitos feitos na raça e na coragem, indo de explosões, poços de lama, reproduções de cavalos mortos e cadáveres.



O Épico de Guerra de Mendes foi feito em One Shotum grande e já conhecido trunfo do cinema, para que o filme parecesse exatamente uma grande sequência dentro de uma específica linha temporal. É o famoso Plano-Sequência. A definição de AUMONT e MARIE é exatamente essa: "trata-se de um plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma sequência (Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, Campinas: Papirus, 2001, p. 231)." Desse modo, 1917 tem dois aparentes planos-sequência, mas que, de fato, trata-se da junção de alguns costurados em pontos específicos do filme (ao adentrarem lugares escuros). Menciono dois porque você saberá exatamente onde estará essa passagem quando assisti-lo. Curiosidade: em língua inglesa o filme é chamado de ONE SHOT no modo LONG TAKE. E o pioneiro nesse sentido foi Alfred Hitchcock e seu Festim Diabólico (Rape/1948).

Depois de assistir ao filme (e somente após isso!), as várias reportagens e vídeos sobre a produção do filme darão a dimensão do árduo fazer dessa jornada cinematográfica. Você se sentirá dentro da missão de Blake e Schofield graças ao esforço da equipe de filmagem que coloca o telespectador na narrativa em terceira pessoa, em primeira pessoa e em travelings (deslocamento espacial de câmera nos trilhos) sem nunca quebrar a sequência, passando por muros, cercas, subindo e descendo, com gente correndo e andando dentro da trincheira, com carros acima dessa com mais filmadoras e seus operadores. Devido ao ambiente apertado das locações, as câmeras em HD tiveram que ser adaptadas para serem as mais leves possíveis e assim facilitar toda a ação. Em entrevista ao programa do Jimmy Fallon, o ator George MacKay disse que os ensaios antes da filmagem levaram 6 meses. Isso mesmo. O filme é uma grande coreografia!

O filme e tão voltado para o realismo que até os ratos parecem de verdade. Assisti a um crítico falando que a película é tão imersiva que na hora do aparecimento dos roedores ele pensou: "Poxa, deve ter dado um trabalhão treinar esses ratos!" E esse é um pensamento momentâneo que nos acomete ao ver a obra, pois aqui sim os efeitos visuais são utilizados para ajudar e não para deixá-lo com cara somente do jogo Battlefield 1.

A fotografia é um ponto alto. A direção de Roger Deakins, que é um veterano da área com 15 indicações ao Oscar (contando com a de 1917), é um primor. As cenas noturnas captam o horror, a agonia e a beleza envenenada pela destruição, na qual as luzes deslizam suavemente pelas ruínas. É um trabalho deslumbrante. Se a fotografia é assim, a trilha sonora de Thomas Newman, também um veterano com 14 indicações a estatueta (incluindo 1917), é grandiosa e bela. Para se ter uma noção, a cena da corrida final de Schofield pelas trincheiras é acompanhada pela composição de Newman e ela torna-se ainda mais memorável com a sonoridade.

Além disso, as atuações são muitos boas. Das grandes estrelas, temos pequenas e importantes aparições, como as de: Benedict Cumberbatch (Sherlock/Jogo da Imitação), Andrew Scott (Sherlock/Fleabag), Richard Madden (Cinderella/Bodyguard) e o já mencionado Colin Firth (Orgulho e Preconceito/Discurso do Rei). Porém são as ótimas atuações dos garotos principais, MacKay e Chapman, desconhecidos* do grande público, que nos levam com seriedade a essa odisseia (*unknown tem sido mais utilizado nas mídias para falar dos protagonistas e considero um termo bastante complicado, uma vez que quem acompanha a BBC, ITV e mais emissoras britânicas já viu muito trabalho dos dois. Só nesse final de semana assisti dois filmes com MacKay, Amor em Tempos de Ódio/Where Hands Touch/2018 e Capitão Fantástico/Captain Fantastic/2016).

Um alerta! Os cartazes já revelam que uma hora a missão será apenas de um homem só. Portanto é Schofield que nos guiará até o destino final. Outro destaque são os figurantes, extremamente interessantes e que atuam maravilhosamente (pois não há nada mais frustante que um figurante apático olhando o horizonte, fazendo cara de paisagem).

No que diz respeito ao contexto historiográfico, pode preparar-se! Muita gente vai falar besteira sobre a I Guerra Mundial e o filme. Portanto vou citar uma crítica que você DEVE EVITAR, mesmo depois de assistir ao filme: a do canal OMELETE TV. Além das falhas técnicas, eles não sabem nada sobre a história desse período e apresentam argumentos fraquíssimos. Por outro lado, pessoas de peso também terão suas reclamações acerca do roteiro dentro da Grande Guerra. Por exemplo, do Waldemar Dalenogare Neto, que é professor universitário, com formação acadêmica na área de história e pós-graduação em cinema, além de membro da Academia Brasileira de Cinema. Ele mesmo deu nota 7 à obra. A crítica dele eu coloquei abaixo. São argumentos muito bons e bem fundamentados. E como estudante de História, vou deixar dois livros sobre a I Guerra Mundial. São eles de autores renomados e muito indicados dentro do próprio curso.

Sim, 1917 é tudo isso: grande, majestoso, épico. É bem feito, bem dirigido, bem ensaiado. Vale muito a pena assistir no CINEMA, pois é para tela grande, para um ótima poltrona e som de primeira qualidade. Faça um favor a si mesmo esse ano: NÃO PERCA POR NADA! É uma EXPERIÊNCIA inesquecível. Uma obra que ficará para a posterioridade e para ser sempre lembrada. 

NOTA: 
10 cafezinhos


Trailer:



Por trás da produção de 1917, trilha sonora, entrevista e críticas sobre 1917:












Para saber mais sobre as técnicas empregadas em 1917:


Livros para começar a entender a I Guerra Mundial:

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O Breve Século XX 1947-1991. São Paulo: Companhia da Letras, 1995.

GILBERT, Martin. A Primeira Guerra Mundial: Os 1.590 dias que transformaram o mundo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2017.


2 comentários:

  1. Ao assistir pensei em estar vendo um épico realmente, como Apocalypse Now ou a Infancia de Ivan ou mesmo Vá e Veja.

    É um dos melhores filmes de guerra da história, e é muito bom ser contemporâneo a isso, ver um clássico nascendo é raro.

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    1. História que está quase se formando como eu, foi um marco. No final, toda aquela atmosfera, a fotografia, as trincheiras, tão bem retratadas, levaram-me a olhar para a I Guerra Mundial e encontrar, incrivelmente, uma linha de pesquisa de um acontecimento dentro dela, que é a Gripe Espanhola. Guardarei sempre com muito carinho esse filme.

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Querido (a) leitor (a), obrigada por ler e comentar no Café Quente & Sherlock! Espero que tenha sido uma leitura prazerosa. Até a próxima postagem!