domingo, 26 de julho de 2015

Das desilusões e suas agonias

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


(Augusto dos Anjos, Versos Íntimos/1901, Eu e Outras Poesias, Martim Claret, 2ª ed., 2001, p. 103)




Lembro-me como se fosse ontem daquela aula de Português em um lugar distante da civilização e acima do céu mais bonito que já vi. Eram tardes amareladas e sufocantes. Naquele instante, deparei-me com Versos Íntimos e seus entrelaçamento perfeito, cheio de ressentimentos e lamúrias. Ali não estava só o registro de um desespero. Havia uma desilusão grandiosa (fruto de ingratidão, desprezo, acusações e traição) destinada àqueles (ou àquelas) que, antes detentores de admiração e amor, depois, tornaram-se algozes selvagens. 

Não há momento mais oportuno do que este: muito triste sim, silencioso e angustiante. E eu recordei-me dessas estrofes e do meu fascínio por Augusto dos Anjos - um dos pré-modernistas (ou simplesmente o inclassificável), poète maudit, que morreu cedo e escreveu um único livro. 

[Hoje tomei inúmeras xícaras de café - consolo momentâneo. Foi o que restou.]

Resgatei, dentro de mim, inúmeras amarguras [tão vastas!]. Não há como descrever, precisamente, o gosto amargo da agonia e do medo. Mas sua localização entre o pulmão e a garganta causa um sufocamento que traz uma sonolência insaciável. A sensação de abandono é apenas uma constatação. 

Foi-se o tempo do amor e das poesias. E meu coração é só saudade do meu antes que amava imensamente e inocentemente. Recordo com carinho do azul fascinante em uma das faces mais instigantes da minha vida. Eram outros tempos, longínquos, misturados com os primeiros cortes no coração, este que ainda era sonhador e cheio de esperanças de uma vida intrépida.

Perdi-me na busca do que li e reli, do meu castelo de areia e ânsias. Estendi a mão e amei; e voltaram-se contra mim todas as minhas ações. Sou novamente tristeza em seu magnífico tom acinzentado.

Não quero este passado que assombra-me agora. Gostaria de ter o outro, da vivaz cor dos oceanos mais límpidos. 

São os meus fantasmas os monstros que alimentei e que tiram-me a paz. E deles quero apenas o esquecimento. 

Não existe escapatória desse distante registro dos erros da minha própria vontade de mudar o que nunca poderá ser mudado.

Sento-me. Mais tarde, com o aprendizado, haverá vinho das minhas próprias lágrimas. 

Versos Íntimos - Declamado pelo ator Paulo José

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O som das águas (O son das augas)*

"Abriu-se uma porta... Era um novo mundo distante deste tão cheio de amarguras incuráveis, de sangue vívido, de pudores e mais vergonhas. Não há mais motivo para esconder a minha própria face. Todas as lembranças esvaíram-se e todos foram esquecidos. Uma nova vida avança, utópica, cristalina e tão reluzente como brasa incandescente. É a tranquilidade dos cantos da aurora. 
Sim... É só um sonho longínquo desse tempo que vivo. E dele alimento-me para sobreviver dia após dia. Teci uma colcha com meus desejos. Esta agora recobre minha alma ainda ferida."


Por entre migalhas caminhei
E não mais hei de usá-las
Meu canto triste guardei
E dele fiz águas passadas.

Verde arboreto com pedras
Um caminho novo, sim!
É delas feita uma orquestra
Com notas em sol carmim.

Tilintar de gotas diamantes
Alvejantes
Entre dois amantes.

Não há mais dor
E muito menos dissabor
És teu tempo, óh, Amor!

                                                       Por T.S. Frank

*Frase em galego para 'som das águas'. É também título de uma das faixas mais bonitas do álbum de 2007, Camiños Da Fin Da Terra, do grupo galego Luar Na Lubre.