sábado, 16 de abril de 2022

O Homem Desesperado de Courbet (em essência, eu mesma refletida...)

Autorretrato de Gustave Courbet: 1843-1845 - Le Désespéré
ou O Homem Desesperado (The Desperate Man)

Há tempos que sinto um gosto metálico na boca, uma tristeza profunda fluida que não se permite dissipar nem mesmo com um café sossegado e solitário. E para piorar toda a situação de anos e anos de dor crônica, suspeito que quebrei o dedinho do pé e nada posso fazer a respeito. Enquanto eu puder andar, deixar de calçar meus sapatos é um problema genuinamente minúsculo perto dos outros que possuo. É até cômico (não fosse trágico) pensar que meus ossinhos fraturados podem ser uma boa tradução da desesperança desértica que me atinge sem pudor.

No outro extremo, penso na morte e suas diversas faces, incluindo o suicídio. Quase todos pensam na última como um crime digno de purgatório ou o limbo eterno. Em minha crença, é uma escolha e um direito. E como tal, para a próxima existência, leva-se todas as consequências dessa decisão anterior. Contudo não penso nisso, não dessa forma. Nesse momento em que estou com mais de três décadas de vida, sinto que me percorre uma espécie de trânsito angustiante, uma lenta e dolorosa extinção do meu eu mais jovial e que acreditava em realizações: viver o céu estrelado como profissão e encontrar bocas para tocar e ouvidos para escutar. Agora, não passo de ruínas. 

Um dia, por cá mesmo, descrevi o meu erro fatal e que foi responsável pela piora do meu estado melancólico, taciturno e da quase total falta de um sentimento mais elevado. Aqueles meses de agosto e setembro do ano passado foram decisivos para que eu me sentisse o pó dos fragmentos anteriores. Por que eu escolhi escutar todas aquelas rudes palavras? Por que eu as aceitei sabendo que seriam um veneno que aos poucos mataria a minha própria essência? Por que todos se foram? E por que parece que eu sempre estive nesse estado de miserabilidade, em diferentes níveis, ano após ano?

E um erro leva a outro. Pois eu tenho a incrível tendência de sair com pessoas que não podem me fazer bem ou mesmo me proporcionar o mínimo prazer. Privo-me, então, cada vez mais, do consolo futuro em forma de lembranças. E essas mesmas criaturas, em especial as figuras masculinas, muito mais novas e imaturas, tornam-me refém de memórias amargas, da insatisfação e do sentir-me muito desprezível. E, assim, meus sonhos viram pesadelos, cheios de monstros, lamúrias e aflição, que me acordam com a sensação de ter sido enterrada viva.

E é aqui que entra Gustave Courbet e sua Le Désespéré (O Homem Desesperado ou The Desperate Man). Com seus olhos arregalados, assustados, visivelmente abalados por alguma constatação. Para Courbet, podia ser a fome espiritual, já que a física estava longe, por ser de abastada família. Ou quem sabe foi a ânsia por reconhecimento em sua revolução com o Realismo; ou, por ventura, amores perdidos ou, finalmente, qualquer um desses grandes padecimentos que uma figura oitocentista passava, ao pensar-se individualmente, imerso em medos: morte, dinheiro, doença e a solidão. E por que eu aqui, no distante século XXI, sinto-me como ele nesse quadro? Meus receios são muito parecidos com aqueles que imagino terem inspirado o pintor francês no momento do aprisionamento de sua própria descrença no autorretrato. 


Paralelamente, se, por muitas vezes, vejo-me nesse Courbet, por outras, sinto-me como o homem solitário de Der Wanderer über dem Nebelmeer  (Caminhante Sobre o Mar de Névoa ou Wanderer above the Sea of Fog) de Gaspar David Friedrich.  É uma outra face do mesmo eu perturbado, apenas num tom de Romantismo e poesia do pintor alemão, num mergulho horizontal nas próprias escolhas da vida.

Der Wanderer über dem Nebelmeer
ou Caminhante Sobre o Mar de Névoa
(Wanderer above the Sea of Fog) - 
Gaspar David Friedrich - 1818
Todavia O Homem Desesperado sou eu olhando-me no espelho, percebendo as imperfeições da idade que foram apontadas por um homem demente e cruel do topo de seus castelo dourado de conforto. Tenho as mesmas expressões de horror por cavar o meu próprio túmulo, perceber meu rosto derretendo e ter a impressão de que eu deveria desaparecer de vez para o bem de muitos. A única diferença nesse cenário é que eu ainda vou continuar a ter dúvidas se Goubert teve algum algoz ou se, mais sortudo, apenas contemplou, nesse revérbero, suas próprias conclusões sem ter sido apunhalado por ninguém. Talvez, no fim, eu mereça tudo isso. 

Amargos trinta e seis e confuso e desalentado começo de um novo ano que promete-me um enorme vazio existencial. E eu poderia amaldiçoar o dia que eu o conheci. E muitas vezes eu assim fiz, em pensamentos íntimos. No auto das minhas súplicas, eu pedi o seu sofrimento e, em uma forma alegórica e triste, só vislumbrei o desespero de uma mãe e seus clamores para que seu filho pudesse encontrar-se na vida. E, de fato, esse filho, na surdina, atormenta e maltrata as filhas de outras mães. Trata-se de uma droga de ciclo vicioso.

Dez longos anos de sombra e escárnio porque eu abri a porta e deixei o mal entrar. E eu tenho plena consciência de que devo implorar por perdão pela minha própria alma, que está numa prisão de ódio e mergulhada na lascívia incessante da vingança.

E que as divindades todas tenham pena de mim porque é só isso que me resta por enquanto.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Mirabella

Galego e Português encontram-se como parentes separados por um oceano. E conversam, às vezes, sobre as suas nobres origens do Latim. E não muito distante disso, Ariano Suassuna disse, certa vez, ao grande Carlos Núñez, músico galego, que gostava muito do som de sua língua. E numa prosa muito frutífera, puseram-se os dois frente à frente, entre toques de gaita, num entendimento perfeito. Eis aí um pouco do meu amor por esse idioma, que inspirou também Garcia Lorca, em Seis Poemas Galegos, de 1935.

Não vou me por a fazer um tratado sobre a língua galega a uma hora dessas da madruga. Aqui só quero expressar um pouco desse sentimento saudosista, de cheiros, gostos e do por vir. Esse último tão promissor e amedrontador por ser, também e agora, um não acontecer. 

Para lá, depois do imenso mar, tem-se o Caminho de Santiago, místico e destino. E para cá, no sertão, também assim se chama; herança dos tempos coloniais de ganhos, perdas e transformação. 

E a cada nome que eu descubro e que leio nessa língua, vejo a vastidão das possibilidades imaginárias. Assim é um mirar belo, de Mirabella, da canção que traz o conto melódico do amor e do temor do descaminho. É ela um ser do maravilhoso, numa narrativa dentro do mirabillis, que, no final, é o próprio Latim.

Um ótimo nome que guardarei, bem como as jornadas galegas de Ariano e Carlos e a voz sussurrante e calma de Rosa Cédron.




domingo, 3 de abril de 2022

O meu eu de promessas e ruínas em uma cidade feita de decadências

Nada vejo por essa cidade
Que não passe de um lugar comum
Mas o solo é de fertilidade
No jardim dos animais em jejum
(Zé Ramalho - Zé Ramalho II - 1979)


A São Luís de hoje não me promete mais nada. Porém a de tempos imemoriais é tudo: estranhamente inquietante, fantasmagórica, doente, pueril, bucólica, campestre e em ruínas; longe do meu eu físico e perto dos meus sonhos. Oferece-me histórias e deixa que eu crie rostos e corpos, que trace suas moradias e suas vidas. Ela não pode ferir-me como a cidade de agora, em que cada face é um inimigo, uma intriga, um olhar de desdém. Deixo-me envenenar por suas promessas não cumpridas. 

Vislumbro um enorme vazio, cinza e bolorento, uma sordidez sem precedentes. Tenho um sentimento de apatia, de desesperança e de escárnio travestido em roupas chamativas, discursos vazios e pautas esquecíveis de todas as cores.

A minha infelicidade aqui é a pura fome: de pessoas, de ânimo, de sentimento. Bebo o insípido cotidiano urbano. Olho o contraste entre os apartamentos luxuosos, dos homens e mulheres na pequenez da atrasada burguesia, e o Reviver, com seus humilhados e explorados, igualmente esquecidos e somente notados através das folhas de algum panfleto partidário, de alguma secretaria do estupor. 

Preocupo-me com o respeito que eu não possuo e com a dignidade que me falta, e que vem somente com o barulho de muitas moedas. Eu sou um produto das oportunidades natimortas e roubadas. Fui violentada com palavras pelos filhos daqui: pelos homens-crianças de todas as classes: da elite fétida e improdutiva até aqueles que hoje reivindicam algum posto de alicerce cultural. 

Sinto há muito tempo o vento frio do descontentamento. Tenho sede e fome de unicidade, que não cessa e só aumenta. E sabe o que mais eu tenho? Uma coleção de conversas tediosas, de seres fracos e deprimentes, que não me servem nem mesmo para um amor casual e despreocupado em uma madrugada de qualquer dia do calendário. São todos eles sujos. Incapazes de suprir o mínimo e merecedores de uma nota de assassinato a sangue frio, numa revista feita do cheiro pútrido da decadência intelectual e moral que ecoa no ar. São as falas pornográficas, devassas e com gosto de plástico que mais enojam-me. 

Malditos sejam aqueles livros e filmes que me criaram! Deram-me o melhor para, no final, eu ter somente o mundo cão.

E se for para ser sempre assim... Que eu abrace de vez a solidão. Pelo menos ela é autêntica e sua promessa de prazer triste é confiável.