sábado, 28 de junho de 2014

Ferri durities temperatur igne, hominum poese et artibus*

"Eis que o tempo passou e os corações tornaram-se rochas polidas e refinadas, porém ainda rochas. A essência de passar para a nova geração a beleza do outrora perdeu-se. Os precursores das artes e poesia são desprezados e sobrevivem cabisbaixos e taciturnos, moribundos, de certa forma, em prateleiras empoeiradas. O futuro é preocupante. A relevância dos sentimentos descritos brilhantemente em palavras, tintas e notas que reluzem como gotas douradas de sol vagueia pelo escárnio - envelheceu. E os discursos limpos e prazerosos sobre ela estão em baixa.
Como sacerdotes da antiga Grécia em ruínas, os semeadores ainda espalham os grãos quase extintos. Todavia os frutos apodrecerão em uma estrada com muitos caminhantes. Se esse cenário se mantiver, em breve, lacunas que não poderão ser mais preenchidas serão uma realidade intransponível e as bases fortes e essenciais, consideradas antiquadas, logo serão derrubadas e substituídas. E será o fim daqueles que embelezaram o mundo apenas com a imaginação. E a dureza dos homens não poderá ser mais abrandada."



Colin Firth e Scarlett Johansson em Moça com Brinco
de Pérola (2003)
Em Moça com Brinco de Pérola (Girl with a Pearl Earring/Reino Unido/Luxemburgo/2003) há um diálogo que merece atenção: Johannes Vermeer (Colin Firth) explica a jovem empregada Griet (Scarlett Johansson) o que é uma base de cor, pois a moça indagou sobre um quadro que parecia não ter nenhum cor certa. Sendo assim, o pintor define que a base determina o tom, a sombra na luz, e quando esta seca, ele dá o acabamento. Para elucidar, pergunta a Griet de que cor as nuvens são e ela responde que são brancas. Vermeer sabia que Griet compreendia e espera pela resposta certa. Griet pensa mais e percebe que as nuvens possuem cores: amarelo, azul e cinza, ou seja, há cores nas nuvens. E ele finaliza: agora você entende. Mais tarde, no desfecho da história do filme, a esposa de Vermeer, furiosa, reafirma que Griet é analfabeta. Mas ela, a própria companheira de Vermeer, não é capaz de compreender a essência dos quadros dele, a beleza e a importância da demora na composição. A jovem empregada, mesmo iletrada, entende e admira, sabe o que pode mudar, por exemplo, a luz no estúdio e atrapalhar a pintura. Ela sabe que pode mover até mesmo um móvel de lugar para dar mais liberdade ao cenário de um quadro inacabado.

Em Os Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills
Kate Winslet em Contos Proibidos
do Marquês de Sade (2000)
/EUA/Alemanha/Reino Unido/2000
), a jovem lavadeira Madeleine (Kate Winslet) faz de tudo para que os livros do Marquês de Sade (Geoffrey Rush) sejam publicados, mesmo este estando decadente e confinado em um asilo. Ela adora ler os contos dele e os considera até mesmo divertidos e cômicos. O Marquês procura chocar, mostrando um lado proibido e faz uso desse para o entretenimento da sociedade. Só que não é aceito e muito menos bem visto. Porém faz sucesso no submundo e poucas pessoas o compreendem como Madeleine.

Nos dois exemplos há a quebra do muro do status social - o poder da compreensão é independente de saber ler ou não, de ser rico ou pobre. É como um instinto, mas somente inerente ao ser humano que nasce com ele.

E na compreensão das artes e da poesia reside, de forma cromossômica, a essência da humanidade - os sentimentos. Não os de origem vil e sim os que emocionam, despertam o amor, a compaixão e fazem rir. Esta percepção tira-nos da escuridão de bases mais selvagens e primitivas - os de posse, os territorialistas, os de sobrevivência a qualquer custo e do possuidor e do possuído. É uma janela aberta que é capaz de manter nossa alma limpa, mesmo com todas as sujeiras ao redor.

Agora vivemos, depois de épocas de frenesi cultural, um verdadeiro estupor, onde prevalece a insensibilidade. Não existe entendimento total das artes e poesia, muito menos da literatura mais trabalhada, ou das músicas mais esplendorosas.

Se estamos em época assim, como haverá o despertar da compreensão naqueles que nasceram e nascerão com essa percepção? Todos precisamos de estímulos e situações para descobrirmos o que nos fazem seres humanos, assim como Griet tinha as pinturas de Vermeer e Madeleine tinha as obras do Marquês. A pergunta que fica é: o que essa geração e a geração vindoura terão? Os novos alicerces são castelos de cartas e as referências diluídas. Sabe-se tudo sobre tecnologia, porém quase nada sobre a escrita. Sabe-se muito sobre a vida dos outros e muito menos como os de perto sentem-se. Sim, os corações transformaram-se em silício, silicone, plasma e LED. Não há tempo e nem vocação para doçura - a praticidade não deixa e o novo não importa-se com o velho.

Porém, enquanto houver uma fagulha da chama que mantém viva as artes e a poesia, bem como sua compreensão, sempre existirá esperança - uma das poucas dádivas que restou nessa caixa de Pandora em que vivemos.

E mesmo encoberto e, por muitas vezes, imaginário, ainda é um mundo maravilhoso, esperando apenas ser descoberto e sentido.

"Amai para entendê-las..." Bilac diria.

***


Palavras e frases latinas:

*Ferri durities temperatur igne, hominum poese et artibus
- a dureza do ferro é abrandada pelo fogo, a do homem pela poesia e pelas artes.

***


Fragmento extraído da parte XIII [Ora (direis) ouvir estrelas!] do poema Via-Láctea de Olavo Bilac, declamado por Juca de Oliveira, ator  e dramaturgo brasileiro.




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