E, nesse janeiro chuvoso, frio, úmido e melancólico, acabei de saber que meu diretor favorito se foi desse mundo cão. O David Lynch morreu.
Lembro-me do primeiro dia que vi Veludo Azul (Blue Velvet/1986). Foi pela televisão, de madrugada. Quando eu ainda tinha sonhos, anseios e uma quase infundável crença numa descarada felicidade. Se eu fechar os olhos, ainda vejo a cor azul balançando ao fundo, as letras em tom de branco e escuto a música de perigo, atenção e despertar. Em contraste, tudo fica negro, e as cercas brancas aparecem: TULIPAS! As crianças felizes, uma mulher que as conduz quase em movimentos robóticos... E depois, no SUBMUNDO, os besouros, a terra, a LAMA: lá estava a orelha - envolta em mofo! E a partir dali o abismo se misturaria aos tons de amarelo, à cerveja, ao "candy-colored clown", às drogas, ao Jeff e Dorothy, todos capturados pela teia profana de Frank Booth. Esse era o cinema bizarro e incrível de Lynch. A minha vida estava ali. Aquele cara, aquela direção, nada... Absolutamente nada sairia da minha mente.
Tratava-se de uma outra existência. Eu não tinha dor. Eu não vivia por ela. Eu me perdi. Flutuei por um tempo que nunca foi meu. As coisas mudaram e tiraram, talvez, muito do melhor de mim. O tempo escorreu como um líquido asqueroso e putrefato, verde, latejante em tom fluorescente. Fui privada dos rostos que amava e que tinha um prazer enorme em contemplar. O agora é jovem e superficial, roubou as conversas agradáveis, um pouco da verdade, o amor utópico, o frio na barriga, o gosto bom do café... E agora o David Lynch.
Eu adio o psiquiatra. Adio meus afazeres... Adio o meu êxtase em viver. E só me sobram os sonhos, indecifráveis, esquisitos, desconfortáveis – eu não durmo! Provavelmente, somente ele, o Lynch, poderia compreender e transformá-los em uma arte irretocável, como tantas vezes fez com seus próprios demônios; e me colocar de novo nesse mundo que teima em dizer que eu já não sei mais quem eu sou e qual o meu propósito.
Lynch tinha um estilo único, assim como seus personagens: todos chamativos por fora e atormentados por dentro. Essa sou eu. Meu exterior reflete cores. Meu interior é só sombra e nébula. Disfarçá-lo é uma questão de sobrevivência.
Seu eu pudesse gritar, gritaria. Quebraria tudo. Largaria esse mestrado maldito. É um peso tão grande. Enorme, do sentir-se um ser altamente rejeitado e fora de contexto.
E o que me resta? Lembrar do David Lynch. Do ontem. E reassistir aos filmes dele. Ele morreu aqui. Mas tem os acolás. E me pergunto se ele vai encontrar a verdade por trás das suas assombrações.
Ser ímpar é exatamente isso: fazer com que milhares sintam que a própria estranheza é um deleite. E Lynch foi mestre nessa arte. Não haverá outro!
Vá pela sombra, eterno!
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