terça-feira, 18 de março de 2025

39

Muito estranho ter 39 anos. É como estar em um limbo: nem 40 nem 38. Trata-se do limiar entre algo super fantástico (que não consigo sentir) e a repulsa dos outros, como seu eu devesse apenas cumprir o papel de sobrevivência e esquecer que sou uma mulher com desejos e ilusões.

Entretanto percebo que os melhores dias foram os de anteontem; distantemente saborosos loucos e solitários, permeados pela esperança e movidos por uma chama ardente no meio do peito. Sim, eu poderia devorar o mundo, tirando pedaços macios feitos de crepúsculos, planetas e constelações. 

Eu amei. E nunca fui amada. E tive que aprender a me reconstruir em um universo em que o amor não me é permitido. Dos homens só tive destrato, violência e o mal-querer. E nunca entenderei o porquê. O segundo plano é amargo demais para suportar. Então optei pela solidão; dessas que são até que muito intessantes: uma xícara de café bem quente, um cheiro suave amadeirado, um livro e uma sessão de cinema.
 
Se antes a tristeza me corroía e, ao mesmo tempo, criava em mim movimentos, hoje, com mais de dois anos de antidepressivo e terapia, sou um pouco inerte, com uma chama gélida estagnada em azul mórbido. 

Sinto falta das paixões, do toque, dos sorrisos e das mensagens que arrancavam sorrisos. Fiquei mais velha e sumiram todas essas mentirosas devoções. A farsa era libido. E, pelo pecado de ser mulher, para eles, o meu tempo se extinguiu. 

Antes eu era cinza. Agora sou tons a mais. 

Estou no Mestrado e fiquei decepcionada. Aliás, a decepção é uma constante em uma equação cheia de variáveis ingratas. 

Vergonha. Pudor. Desaparecimento. Não há espaço para mim. Pelo menos não um que faça parte dessa realidade tão líquida, tão raivosa e superficial. 

Sou feita de sono, de pesadelos e de dormência muscular. Bendito e maldito remédio! Sem ele, muita dor; com ele, muito pesar.

De verdade... Talvez eu seja atualmente uma projeção do que fui - uma simulação do eu de ontem.

Eu escrevo e finalizo. A base de inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina.

Queria uma conversa - de verdade, sem modernidades, luz da lua ou de vela.

Preciso de presença. E não de simulacros.

Sim. Estou cansada.

Fim. (por enquanto...).

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

E meu diretor favorito morreu: David Lynch (1946 - 2025)



São dias muito cinzas. Para mim, ainda mais. A turbulência silenciosa da minha mente e o desfragmentar dela a cada dia coincidem com as idas a psicóloga, a fibromialgia, o mal-estar reinante e a iconoclastia cotidiana. Entrei no Mestrado, um maldito sonho que virou um incrível pesadelo. E esse tem arrematado os nós do meu inferno pessoal. Não consigo finalizar minha qualificação, perdi a fé nas pessoas e tomo um antidepressivo para dor crônica que tem me transformado em um espírito vagante pela terra e envolto pela névoa do sono e da decepção...

E, nesse janeiro chuvoso, frio, úmido e melancólico, acabei de saber que meu diretor favorito se foi desse mundo cão. O David Lynch morreu.

Lembro-me do primeiro dia que vi Veludo Azul (Blue Velvet/1986). Foi pela televisão, de madrugada. Quando eu ainda tinha sonhos, anseios e uma quase infundável crença numa descarada felicidade. Se eu fechar os olhos, ainda vejo a cor azul balançando ao fundo, as letras em tom de branco e escuto a música de perigo, atenção e despertar. Em contraste, tudo fica negro, e as cercas brancas aparecem: TULIPAS! As crianças felizes, uma mulher que as conduz quase em movimentos robóticos... E depois, no SUBMUNDO, os besouros, a terra, a LAMA: lá estava a orelha - envolta em mofo! E a partir dali o abismo se misturaria aos tons de amarelo, à cerveja, ao "candy-colored clown", às drogas, ao Jeff e Dorothy, todos capturados pela teia profana de Frank Booth. Esse era o cinema bizarro e incrível de Lynch. A minha vida estava ali. Aquele cara, aquela direção, nada... Absolutamente nada sairia da minha mente.

Tratava-se de uma outra existência. Eu não tinha dor. Eu não vivia por ela. Eu me perdi. Flutuei por um tempo que nunca foi meu. As coisas mudaram e tiraram, talvez, muito do melhor de mim. O tempo escorreu como um líquido asqueroso e putrefato, verde, latejante em tom fluorescente. Fui privada dos rostos que amava e que tinha um prazer enorme em contemplar. O agora é jovem e superficial, roubou as conversas agradáveis, um pouco da verdade, o amor utópico, o frio na barriga, o gosto bom do café... E agora o David Lynch.

Eu adio o psiquiatra. Adio meus afazeres... Adio o meu êxtase em viver. E só me sobram os sonhos, indecifráveis, esquisitos, desconfortáveis – eu não durmo! Provavelmente, somente ele, o Lynch, poderia compreender e transformá-los em uma arte irretocável, como tantas vezes fez com seus próprios demônios; e me colocar de novo nesse mundo que teima em dizer que eu já não sei mais quem eu sou e qual o meu propósito.

Lynch tinha um estilo único, assim como seus personagens: todos chamativos por fora e atormentados por dentro. Essa sou eu. Meu exterior reflete cores. Meu interior é só sombra e nébula. Disfarçá-lo é uma questão de sobrevivência.

Seu eu pudesse gritar, gritaria. Quebraria tudo. Largaria esse mestrado maldito. É um peso tão grande. Enorme, do sentir-se um ser altamente rejeitado e fora de contexto.

E o que me resta? Lembrar do David Lynch. Do ontem. E reassistir aos filmes dele. Ele morreu aqui. Mas tem os acolás. E me pergunto se ele vai encontrar a verdade por trás das suas assombrações.

Ser ímpar é exatamente isso: fazer com que milhares sintam que a própria estranheza é um deleite. E Lynch foi mestre nessa arte. Não haverá outro!

Vá pela sombra, eterno!


***


Falei de do filme Veludo Azul, em 2011, aqui: