Capa de O Oportunista/1973 |
Eu não odeio o sexo oposto. Entretanto, ao longo dos anos, ele passou do status de delicatesse para uma figura invasiva, ávida por penetrações e satisfação do próprio ego e falo. Os homens, na grande maioria das vezes, tornam-se patéticos por pensar que são os únicos indivíduos que saciam nossos desejos. A ignorância e má vontade são seus piores inimigos.
Pois bem, já que estamos falando do machismo, cabe aqui dizer que nem mesmo a minha coleção literária escapa ilesa. É certo dizer que algumas obras favoritas cairão no limbo, empurradas pela revelação das ideologias nefastas de seus escritores.
E foi assim com Piers Paul Read e um dos livros da minha adolescência - O Oportunista (The Upstart/1973), lançado aqui lá pela década de 1980 e que só fui ler quase nos anos 2000. Ele estava esquecido até outro dia, pois o primeiro exemplar esvaiu-se com as inúmeras mudanças de casa e cidades. Contudo o saudosismo não me deixou esquecer de Hilary (um homem, pois sim!) e suas desventuras. Comprei um exemplar usado pelo site de sebos Estante Virtual. E lá fui procurar mais sobre o autor...
Piers é, antes de tudo, um católico britânico fervorosíssimo e que deixaria qualquer horda de beatos Os Sobreviventes - A Tragédia dos Andes (Alive: The Story of the Andes Survivors/ 1974) e que virou o filme Vivos (Alive/1993/Com o Ethan Hawke).
Contracapa de o Oportunista/1973 |
A religiosidade fanática sempre foi e será um empecilho para a aceitação de que as mulheres são iguais aos homens em intelecto, força e potencial. E são por bravatas como essas abaixo que, por mais erudita que seja a pessoa, qualquer traço de admiração por seu trabalho é mirrado:
"Você não encontra qualquer evidência de que as mulheres estão insatisfeitas com a sua condição antes do século XVIII [...]. Eu acho que as mulheres viam como ordem natural o fato de que o homem deveria ser o chefe da família, o que foi também aprendido com os ensinamentos cristãos. Por isso elas desempenhavam este papel doméstico. E eu acho que as feministas provocaram um ressentimento contra os homens que persiste até hoje." (Piers Paul Read , 18 de julho de 2010, The Guardian)
Há muito para analisar...
Vejamos a primeira declaração. Um historiador que afirma que as mulheres antes do século XVIII estavam plenamente satisfeitas com seu papel de parideiras e gerenciadoras de refeições é de uma percepção assustadoramente idiota. Afinal, que ser humano não teria medo de, um vez colocado o seu total desgosto com sua própria condição, ser: separado dos filhos, posto em um manicômio, ter um apedrejamento moral e físico (o que acontece até hoje), entrar para a classe dos párias, além de assassinatos pela tal defesa da honra (masculina) e outras perversidades? Ele, usando muito bem a construção de argumentos para deturpar, faz de sua condição de estudioso da área um atestado de que TODAS AS MULHERES eram donas de casa por um prazer quase nirvânico. Seria bom que ele aceitasse que as feministas não provocaram sentimentos ruins contra os homens. É que a modernidade trouxe também um conceito talvez bem novo para este senhor: o direito das mulheres.
Livro: Os Sobreviventes A Tragédia dos Andes/1974 |
Já a segunda sentença... Meu Deus... Todos são culpados pela separação de um casal: as mulheres, o cachorro, os jornais, os livros, o remédio, a TPM, o psiquiatra, a falta de psiquiatra, menos, é claro, os homens! Como ele pode dizer que o feminismo não deixou as mulheres felizes? Isso seria mais uma vez o mansplaining do escritor gritando? Chega a ser engraçado o fato dele ignorar que as crianças não são educadas apenas pela mãe, que há um pai que tem mãos, boca e cérebro não só para espalhar sua testosterona territorial. Gostaria muito que ele falasse isso diante de todas as mulheres que criaram seus filhos trabalhando (com ou sem um pai presente) e sobreviveram bem, assim como as proles, e desempenharam um papel ótimo.
Essa tal felicidade proporcionada pelo amor e proteção dos homens parece um daqueles slogans cafonas e antiquados da antiga URSS para promover os grandes feitos da nação. Colocando minhas próprias experiências na mesa, digo que meus momentos mais infelizes e miseráveis foram ao lado de homens. Nenhum deles me proporcionou prazer algum, todos tão enfadonhos e medíocres em seus mundinhos pequenos de machos alfa. Neste ponto concluímos que boa parte deles espera de relacionamentos estáveis e casamentos, além do famoso transar para fazer filhos (porque depois vem as amantes e prostitutas), uma outra mãe, pois eles não suportam a ideia de viverem por conta própria. Isso sim pode explicar uma das origens da famigerada ordem natural das coisas.
Depois de todo esse desvelar, pergunto-me qual será a minha reação ao olhar novamente aquele livro que devorei há tantos anos. É um tanto quanto desolador esse tipo de iconoclastia: não se trata apenas de quebrar uma imagem. A luta para não matar toda uma uma obra é a parte mais difícil.
De qualquer maneira, nunca mais verei a criatura e o criador da mesma forma. O machismo é realmente um ceifador feroz: destrói corpos, vidas e boas lembranças literárias.
As mulheres estão felizes por deixar as feministas serem duramente criticadas: poucos estão preparados para defender o movimento que deu direitos às mulheres. É por isso que o Piers Paul Read pode atacá-lo sem ser desafiado. Artigo em inglês - The Guardian Eletrônico
Machismo é tão retrógrado e ainda existe. Infelizmente também há bastante material literário nessa linha, o que é uma pena, mas se pensarmos tem mais uma coisa de época relacionada, não que justifique.
ResponderExcluirMuito bom o texto, bem crítico.
Temos que ver a obra com o olhar da própria época. Há sim muita coisa intragável, que realmente é difícil de ler com a mente de hoje. No final, torna-se um exercício histórico para analisar a sociedade de um tempo específico e os próprios valores do autor. Obrigada pelos elogios! Abraços!
ExcluirUm tantinho quanto decepcionado com essas declarações... mas ainda assim pretendo ler "Os Sobreviventes".
ResponderExcluirE você faz bem! Temos que separar o autor das obras. Por exemplo, em História ou Literatura, se não fizermos isso, não teremos mais referencial teórico! Abraços!
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