domingo, 10 de dezembro de 2017

Triste, Louca ou Má

Ainda lembro-me daqueles sonhos românticos que espalhavam-se pela névoa da manhã. Era uma época juvenil e inocente. Não culpo-me mais por um dia tê-los cultivado e não os chamo mais de ilusão. Dentro de mim, tudo era poesia, liberdade e prazer.

E este tempo findou-se. Foi selado e guardado. E culpados existem, muitos até, conhecidos e desconhecidos, com seus nomes, sobrenomes, exalando o cheiro característico dos machos.

Gravei cada frase em um registro único e mental. Eis que há de tudo, de insultos puros e diretos até o machismo velado disfarçado de gestos marcados pela singeleza e gentileza,

E nesse universo, o meu novo vício surge: a novela Do Outro Lado do Paraíso, de Walcyr Carrasco. Ela é baseada no livro O Conde de Monte Cristo (1844), do francês Alexandre Dumas.

Assim, apresento a nova heroína da teledramaturgia brasileira: Clara. Difícil não identificar-se com ela, pois carrega um pouco de cada uma de nós.

Clara foi vítima de um relacionamento abusivo. Casou-se com seu algoz que travestiu-se de príncipe encantado. Ela foi estuprada pelo marido na noite de núpcias e apanhou muito dele ao longo do relacionamento. Por ser uma moça pobre que uniu-se a um homem rico, ela constantemente culpava-se, dizendo que não estava à altura dele. Precisou conviver com seu ciúme doentio e também passou por outro tipo de violência doméstica da qual muito não se fala: a violência patrimonial. Tudo foi-lhe tirado, sua herança (uma grande mina de esmeraldas), o filho e a liberdade. Foi interditada, através da corrupção, e considerada louca. Foi jogada em um hospício. Conseguiu escapar, ganhou uma grande fortuna e agora chegou a hora da sua vingança.

(um dos meus temas favoritos nas Artes é exatamente a vingança e todos os injustiçados que a praticam têm a minha admiração. Mas este é um assunto para outra hora...)

Nossa protagonista possui um tema musical em forma de hino. E é sobre o mesmo que gostaria de falar...

... O título desse texto.

Triste, Louca ou Má, uma canção do grupo Francisco, El Hombre, é uma referência aos adjetivos recebidos por mulheres que confrontam essa noção de que o homem, a casa e a carne são as coisas que as definem. 

Eu mesma já recebi esses adjetivos.

Uma vez um determinado rapaz leu alguns dos meus escritos. Ainda ecoa a palavra triste das poucas conversas que tive com ele. Ora, uma mulher que escreve sobre suas experiências e sentimentos não pode estar procurando outra coisa a não ser o consolo de um pênis e a proteção que somente o sexo masculino pode oferecer. Em sua cabeça, meus relatos mostram-me como uma fêmea desolada e amargurada.

A palavra louca, bem, foi uma das mais empregadas. Eu sofri, durante dois relacionamentos de naturezas bem distintas, violência psicológica. O primeiro foi o mais marcante. Continuamente eu era chamada de insana, mesmo com toda a razão ao meu favor. É o que chama-se hoje de de gas lighting, uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas e seletivamente omitidas para favorecer o abusador. Há o uso de mentiras com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria mente, percepção e sanidade. Vem em minha memória certa ocasião em que perguntei a esse homem sobre o sistema operacional de um determinado aparelho celular, algo muito trivial e corriqueiro. Mal fechei a minha boca e esta pessoa começou a alterar-se e chamar-me de desvairada e incapaz de lembrar que ela tinha explicado-me sobre aquilo anteriormente. Eu entrei num estado de estupor e choque. E mesmo sabendo que nunca foi-me explicado nada sobre o assunto, comecei a pedir desculpas e a duvidar de mim mesma. Fatos parecidos com esse foram tão frequentes que eu pensava não ser tão inteligente. No meu segundo relacionamento, se eu, por exemplo, não gostava de algo que meu ex achava muito bom, ele falava sem parar que eu era um embuste. Ele também usava frases isoladas e que foram ditas em um determinado contexto por mim como uma arma de repressão. Era um ciclo sem fim de tentativas de uma espécie de lavagem cerebral. Situações bizarras aconteciam o tempo todo. Se eu tinha cólicas menstruais e reclamava disso, escutava - Você está exagerando. Nem está sentindo dor. Isso é coisa da sua cabeça!  (Falo mais sobre esses fatos nessa postagem aqui - UM NAMORO FALIDO E VIOLENTO).

Já a denotação má... Tenho uma historinha boa à respeito. Em uma ocasião eu disse que não me dava bem com crianças, que não pretendia ter filhos e que elas pareciam muito ameaçadoras. Um colega taxou-me de malvada, que parecia que eu tinha um monstro dentro de de mim.

"Triste louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar"


Homens rejeitados podem ser muito cruéis. Eu já lidei com alguns. E tenho tantos relatos... Um desses moços, incapaz de dá-me prazer, diante da minha sinceridade e posterior recusa, usou a masculinidade ferida para despejar - você é frígida! 

"Seguir receita tal
A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina"


Um trecho perfeito para definir a cultura maldita da sociedade patriarcal.

"Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores

Aceita que tudo deve mudar"

O processo de reconhecer-se vítima de violência por ser apenas mulher é extremamente complicado e doloroso. Nesse meio, muitos dirão que você, por não querer agradar a um homem, por não pintar as unhas, vestir-se e maquia-se para ele, não passa de uma MAL AMADA ou, de forma simples, como disse meu ex-namorado, não sabe o que é ser uma mulher.

"Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar"


Uma mulher não precisa de um homem para ser respeitada, digna e completa. Ela basta-se, reside em si mesma, seu templo sagrado. Qualquer um que diga o contrário, mesmo com juras de amor, enxerga em sua frente apenas um objeto que quer possuir a todo custo.

"Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só"


Um dos trechos que mais me tocou. Em meu último relacionamento, meu ex, ao perceber que o fim estava próximo e a minha distância, sempre repetia - você, sem mim, vai viver só. Nunca vai encontrar ninguém com esse seu jeito e essas ideias. Você está destinada a solidão...


"Eu não me vejo na palavra
Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima
Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar"


E é assim que cada mulher deve agir, nunca conforma-se com a violência de qualquer aspecto e natureza. 

Sim, precisamos de renascimento através das nossas próprias ruínas, ter metas e destruir a roda da opressão.

Não é um caminho fácil. Haverá dedos que apontarão e bocas que jorrarão as denominações mais nocivas. 

Um passo de cada vez, por menor que seja, será o começo de uma grande nova vida.





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