domingo, 29 de maio de 2016

Icarus

Ícaro e Dédalo de
Charles Paul Landon

Antigamente, muito antigamente, eu olhava o céu do meio-dia com suas nuvens em sombras douradas, mergulhadas em um branco de calmaria infinita... Passavam elas lentamente. E eu estava naquele piso, da casa do interior, com olhos brilhantes de esperança. Afinal, tudo iria mudar, pois ao crescer, todas as metas tornariam-se realidade. Esta é ainda uma lembrança vívida... Lembranças de momentos tolos sempre são os mais presentes.

O tempo foi passando e nada foi acontecendo. Não, ao menos, no meio material. Foram muitas mudanças para casas ruins, estudos enfadonhos, empregos degradantes. A família entrou em colapso e pessoas nefastas ao redor multiplicaram-se como os peixes de Jesus. Era uma pintura cinza e imunda aquele cenário. Um escárnio diário, uma agonia sem precedentes.

De vez em quando um brilho tênue, muito débil, pairava sobre minha vida. Daí eu dei-me conta que era só um reflexo da vida alheia. Afinal, nada daquilo pertencia a mim. Eram minhas projeções que criavam personagens - os mesmos dos livros que tanto amei (os responsáveis pela minha sobrevivência até o presente momento.).

A linha da minha vida é escarnecida e muito desfiada ao longo do percurso. Essa é uma definição mais do que clara até aqui. Eu errei muito. Minha pele parece que encolheu e agora espreme meus ossos.

Há um certo tempo eu tenho saudade daquele brilho tênue e muito débil. E isso é tristemente doloroso, pois sinaliza bem mais do que o fundo do poço da minha própria alma.

Apesar desse trajeto excruciante, eu ainda tenho muitos amores, os verdadeiros, os que não podem ser retirados de mim e que dependem somente da minha existência. Há uma incessante sede de voar, de ser livre, não ter mais corpo e espalhar-se mundo afora, ser o próprio aroma de todas as manhãs - bastar-se!

Mas nós, mulheres, temos uma tendência a ser um Ícaro.

Uma mulher tem o coração enorme. Suporta tantas injustiças e tantos desamores. É explorada, objetificada, traída inúmeras vezes... Os homens, em seu machismo e egoísmo, sempre tentam justificar seus erros aumentando os nossos. Raramente culpam a própria alma mimada.

O voo de Ícaro de Jacob Peter Gowy
Queremos ir mais alto e podemos. Mas cortaram nossas asas. E nossa inteligência criou um mecanismo de fuga, tecido com enorme zelo. E em nosso próprio desespero e encantamento, esquecemos de nos blindar e tomar cuidado. E o Sol, nosso inimigo, derreteu nossas asas. Frustradas, caímos para nossa própria morte.

Na contramão, eu não consigo entender essas mulheres de coração enorme - talvez porque o meu diminuiu. Por que perdoam? E amam infinitamente? E esta fé inabalada de que o amado vai mudar, ou de que tudo irá ser justo? Tão mais fortes e sensíveis, deveriam enxergar que elas são o suficiente para si mesmas (caso seus relacionamentos apenas subtraiam de seu amor próprio). Nesta vida, eu suponho, nunca obterei uma resposta e concluo que o mundo é um teatro de quinta categoria, vulgar, opaco, feito mesmo para o sadomasoquismo dos sócios majoritários.

Eu aprendi de muitas maneiras difíceis. E isso não significa que fiquei mais forte. Estou, a propósito, muito atônita com tudo isso que acontece.

Eu já dediquei muitos textos para aqueles que gostei. Mas em minha vida, no fundo, amei duas vezes. A primeira, há tanto tempo, na adolescência quase imemorial. A outra, bem... Foi o meu próprio céu, aquele que eu criei, e o inferno, o que realmente ele pode oferecer-me. E, agora, essas são partes inexoráveis de minha vida

Até agora falei apenas em decepções, desamores, falta de dinheiro, humilhações... Porém, analisando, todas essas têm participações que fogem do meu domínio. Existem outras pessoas ali, pouco preocupadas comigo. Eu sou a única que pode importar-se com o mais precioso: eu mesma.

O lamento por Ícaro de Herbert James
Draper
Então, o que realmente vale a pena a ponto de empregar-se a vida inteira? O que não podem me tirar? O que posso proporcionar-me? São para essas perguntas que eu preciso buscar respostas urgentes.

E essas respostas, mesmo incompletas, trazem a calmaria do barulho do mar. E isso agrada-me tanto que poderia morrer escutando as ondas que batem nas pedras. A última imagem captada por meus olhos, ainda com um sopro de vida, poderia ser das nuvens cinzas, enormes e macias que formam-se no horizonte, cheias de uma chuva gelada que toca a pele como um choque celestial. Seria um lugar frio, mas ao mesmo tempo acolhedor. Nada de Sol, com seu brilho cego e falso e um calor escaldante. Nada de um céu azul esfuziante como propaganda de margarina.

Não almejo uma vida cheia de dinheiro e montanhas de bens materiais. Com o tempo, aprendi que posso lutar para tê-los, se eu gastar muito da minha vida nessa empreitada, mas correrei o enorme risco de não ter muito do que realmente preciso.

Destruição de imagens em Zurique/1524
Retirado de Panorama de la Renaissance de
Margaret Aston



A vida é sim uma iconoclastia. E os fragmentos resultantes não poderão ser restaurados nem com a maior fé universal. Talvez, lavoisiando, esses cacos sejam transformados em lições e frutifiquem, espalhando sementes de aprendizado.

Hoje tenho a sensação do fracasso e da impotência, da servidão e do não reconhecimento. Tudo realmente está errado e fora de lugar. E eu poderia muito bem apagar tudo e todos da minha mente, sem nenhum arrependimento. Todavia não posso e não é possível.

Este peso que carrego em meu coração é um aviso cotidiano para fortificar as minhas asas: o presente está corroído e o futuro poderá ser um painel dos ossos que quebrei na minha jornada.


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